Reminiscências

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Crônica de Emílio Amadei Beringhs

Maio de 1966

Um dos aspectos mais interessantes das cidades do Vale do Paraíba, nos primeiros anos do século vinte, era aquêle oferecido pelos mercadores de guloseimas, à parte dos “circos de cavalinhos” que periòdicamente nos visitavam, ou às esquinas próximas dos cinemas, os dois que tínhamos então em Taubaté, o Cinema-Rio e o Taubaté Cinema, dos quais já falamos em outras crônicas, neste programa da Saudade.

A cidade apresentava aquêle colorido todo especial, porque antes do advento da elétrica,era iluminada a gás de xisto pirobetuminoso.

Os lampiões dispostos em distâncias convencionais nem sempre produziam uma luz suficientemente razoável, mesmo porque as camisetas, permanecendo muito tempo em uso, adquiriam uma côr cinzento-escura por onde a custo a chama de gás se coava.

Naquele tempo havia na cidade muitos dêsses negociantes ambulantes, em grande parte mulheres, que preparavam quitutes dos mais variados, como coxinhas de galinha, bolinhos de arroz ou de farinha de mandioca e carne, pastéis e empadas ou, na época certa, os deliciosos pinhões cozidos, armando suas tendas às portas dos circos e lá permaneciam à espera dos costumeiros fregueses, até que o espetáculo terminasse.

As guloseimas eram dispostas em tabuleiros feitos de fôlha-de-flandres, com uma pequena lamparina na parte de baixo, a fim de que as “mercadorias” permanecessem aquecidas. A falta de luz era suprida com lampiões a querosene e não raro apareciam também os vendedores de pipocas ou amendoim torrado, tudo feito na hora, “na cara do freguês”, para delícia dos habitués dos espetáculos.

Um pouco mais tarde apareceu na cidade um carrinho que produzia flocos de açúcar queimado, que o povo chamava de “algodão doce”. O sorvete só veio bem depois disso tudo, mesmo porque sem eletricidade era difícil conseguir-se a nova modalidade de refrigerante.

Algodão doce, o floco de açúcar queimado

Era esse o retrato de uma cidade antiga, capaz de conservar por longos anos a mesma fisionomia econômica, até que o sôpro quente do progresso varresse, quase que totalmente, aquelas figuras constantes que emolduravam as noites taubateanas.

Quando ainda hoje nós vemos fotografias de São Salvador, na Bahia, onde pontificam as vendedoras de vatapás e outras guloseimas, nesta já passada metade do século, recordamo-nos com intensa saudade daqueles tempos sossegados em que os taubateanos ouviam os costumeiros pregões de sempre: “Olhe o pinhão cozido!” “Olhe a empadinha fresca, quentinha, siô”. “Pastéis de galinha, sinhazinha! Estão quentinhos…”

De vez em quando surgia aquela gaitinha fininha, característica, que interrompia tais pregões, para anunciar o amolador de tesouras, facas e outros utensílios e que ia de rua em rua, de casa em casa, em busca de possíveis clientes.

Muita coisa se poderia contar da vida desses abnegados servidores do público, que tiveram lugar destacado na vida bucólica de nossa cidade e que proporcionavam meios de vida a muita dona de casa que, trabalhando na manipulação dessas guloseimas, ajudavam a família em suas despesas ordinárias.

Guaraná Joaninha, o mais famoso refrigerante local. Foto de Ari Zacchi. Clique na imagem para mais detalhes.

Os doces caseiros, de abóbora, de batata-doce, de mamão ralado, de cidra, ou os pinhões cozidos, as empadinhas, as coxinhas de galinha, os pastéis de carne e palmito, bolinhos de peixe ou arroz, tudo isso é parte integrante de uma sociedade que hoje se movimenta, se agita, se consome no bulício enervante em que dominam o motor, o barulho, a fumaça …

Taubaté, em pouco menos de cinqüenta anos, sofreu alterações profundas e de tal ordem que poucos são poucos se abalançam a acreditar nas histórias como as que, semanalmente, contamos aos nossos amigos, através do rádio e dentro do programa da Saudade.

Tudo foi real. E por ter sido real, merece um registro cuidadoso, registro que vale por uma verdadeira fotografia escrita da Saudade, que acompanha sempre a poesia que o tempo vai apagando, apagando, sem deixar outro vestígio senão a recordação amiga de uma época.

Emílio Amadei Beringhs
emilioDesde menino foi funcionário da CTI.

Atuou por mais de 50 anos no jornalismo taubateano, descreveu com maestria o cotidiano taubateano. Integrou o Instituto Geográfico de São Paulo. Foi um dos pioneiros do rádio amadorismo no Vale.
Na radiodifusão convencional, foi responsável, junto com Alberto Guisard, pela pioneira Rádio Bandeirantes.
Em 1941, foi co-fundador da Rádio Difusora de Taubaté. Foi sócio fundador do Aero-Clube de Taubaté.
Em 1967, escreve o primeiro volume do obrigatório livro Conversando com a Saudade, descrito por muitos como pedaços da alma de Taubaté. É, também, de sua autoria, a bandeira de Taubaté.

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