A LIBERDADE E A ORDEM

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O Brasil ainda não superou o período chamado “pós abolição”. Oficialmente considerado como os anos entre 1889 e 1930, coincidindo com o que os historiadores chamam de República Velha, o pós-abolição esteve sempre associado à ideia de uma sociedade regida por um governo oligárquico, no qual os interesses de um pequeno grupo superam os da maioria. Dessa forma, nos primeiros quarenta anos da República a ordem política se manteve quase inalterada e a ordem social seguiu as diretrizes da classe dirigente, abrindo pouco espaço para mudanças estruturais.

A questão da inferioridade do ex-escravo e seus descendentes, seguia a ordem social baseada no privilégio de nascimento e de classe, apoiada naqueles anos pelas teorias do racismo pseudo-científico, que rapidamente se traduziu para o linguajar popular, podendo ser encontrado em artigos publicados em almanaques e jornais, nos livros didáticos e principalmente nos discursos exclusivistas que transformaram o debate científico em senso comum.

Após a abolição, muitos ex-escravos continuaram nas fazendas como trabalhadores livres mas em condições não muito diferentes do cativeiro. Fotografia de Marc Ferrez, em uma fazenda de café no estado do Rio de Janeiro (Instituto Moreira Sales)
Após a abolição, muitos ex-escravos continuaram nas fazendas como trabalhadores livres mas em condições não muito diferentes do cativeiro. Fotografia de Marc Ferrez, em uma fazenda de café no estado do Rio de Janeiro (Instituto Moreira Sales)

A liberdade chegou ao Brasil de forma muito fugidia. Os trabalhadores negros ficaram livres, porém nem tanto. Os códigos de conduta se encarregavam de excluí-los de locais públicos em nome da moral e dos bons costumes (porque estavam sempre precariamente vestidos e raramente calçados), a ordem jurídica ampliou o conceito de crime e estendeu a ação policial para perseguir e erradicar práticas culturais e religiosas, para conduzir ao trabalho diário e controlado, para punir qualquer desvio de conduta e de condição.

A ordem econômica procurou mantê-los numa categoria ainda mais rentável do que o escravo para os senhores: o subemprego. Entre as múltiplas categorias de subemprego o trabalho doméstico, o trabalho sazonal nas fazendas e o trabalho ocasional nas cidades colocava o trabalhador pobre e negro à mercê dos patrões, que não eram mais responsáveis pelas condições de sobrevivência dessas pessoas. A busca de melhores oportunidades leva ao deslocamento para as cidades e construções precárias de barracos e casas de cômodo vão surgindo em áreas menos privilegiadas não apenas das grandes capitais, mas das cidades que pudessem oferecer condições de empregabilidade e alguma liberdade.

No Vale do Paraíba, com a decadência da economia cafeeira na virada do século, o afluxo de imigrantes europeus foi menor do que em outras regiões, levando à manutenção dos negros como mão-de-obra nas fazendas de café e de produtos como a mandioca, milho e feijão. Esses trabalhadores, porém, estavam sujeitos a condições de trabalho pouco diferentes do escravismo anterior, e o mais importante, a sua condição social, o seu status dentro daquela sociedade segue praticamente inalterado, como mostram os trabalhos historiográficos baseados na memória e as biografias publicadas recentemente que retratam a experiência dos negros durante a República Velha e primeira metade do século vinte.

A resistência à exclusão e exploração foi quase que imediata e espontânea, dando-se de inúmeras formas: violenta ou pacífica, marcadas por conformismo, confrontamento, denúncia. Vários jornais classificados como imprensa negra surgiram no período indicado, a maioria de vida curta; um dos mais organizados chegou a formar um partido político, a Frente Negra Brasileira, que durou até o Estado Novo, em 1937.

A imprensa negra brasileira teve um vida muito mais frágil do que similares nos Estados Unidos e na África do Sul.
A imprensa negra brasileira teve um vida muito mais frágil do que similares nos Estados Unidos e na África do Sul.

Na década de 30, o nacionalismo de Vargas decretou que o Brasil não é um país racista e todas as formas de organização baseadas em diferenças ideológicas ou nacionais foram abolidas, incluindo a imprensa e o movimento negros (não era a primeira vez que a legislação considerava os afrodescendentes brasileiros como grupo de nacionalidade diferente). E foi assim que o país se tornou liberal e anti-racista: por determinação oficial.

A liberdade e a tolerância racial brasileira se tornaram conhecidas no mundo inteiro virou um mito muito distante da realidade de muitos homens e mulheres que continuavam a sofrer com a discriminação, que tinha como objetivo central manter o status quo das camadas superiores. A liberdade dos pobres esteve sempre vinculada ao contextual, suscetível de ser cancelada, suspensa, sempre condicional. Houve muitos que afirmaram que o Brasil não precisava de leis de segregação, pois aqui os negros sabiam o seu lugar.

A luta para manter a velha ordem chega aos dias de hoje. Em novembro de 2012, a jornalista Danuza Leão publicou na Folha de São Paulo um artigo no qual diz que não vê mais graça em tomar o avião e ir para Paris ou Nova Iorque, porque, nas condições atuais, o porteiro do seu prédio também poderá fazer a mesma viagem. Para ela, o mais interessante da vida de alta classe é que ela pertence a uns poucos eleitos, e quando as mudanças na economia brasileira, que sabemos que nem são tantas assim, promete aos brasileiros da classe C que eles também podem ter acesso a certos luxos – pagos os em dez parcelas ou mais – o que era luxo perde a graça.

Mas o grande golpe contra a ordem social baseada no privilégio veio em 26 de março de 2013, quando o Senado aprovou uma emenda que concede às empregadas domésticas os mesmos direitos garantidos a todos os trabalhadores brasileiros desde a reforma trabalhista de Getúlio Vargas. A proposta foi aprovada por unanimidade no Senado, porém a opinião pública ficou bem dividida: entre os que aplaudiram a correção de uma injustiça centenária e os que criticaram a medida como mais um abuso contra a classe média brasileira.

Mulher negra na Bica do Bugre em Taubaté (MISTAU)
Mulher negra na Bica do Bugre em Taubaté (MISTAU)

Houve ainda aqueles que basearam seu discurso no argumento de que uma lei que garantisse salário mínimo, adicional noturno, férias, FGTS, 13° salário, horas extras, licença maternidade, etc. viria a agravar a crise social, porque muitas famílias, impossibilitadas de manterem suas domésticas, não teriam outra opção senão demiti-las, aumentando o desemprego entre a camada mais pobre da população. Este argumento me fez lembrar o discurso contra a abolição que dizia que os negros, uma vez libertos – sem aptidão para o trabalho assalariado, e sem capacidade de auto-gestão – iriam cair na vadiagem e criminalidade; argumentando que a libertação do escravo era também uma forma de abandono, visto que os senhores seriam ao mesmo tempo “protetores” de seus escravos, zelosos de seu bem-estar.

Eu ouvi muitos argumentos neste sentido nos últimos quinze anos, quando os salários das empregadas domésticas começou a subir nas grandes cidades. Mulheres que se auto-afirmaram economicamente, muito ciosas de seus direitos feministas, trabalhistas e de cidadãs, argumentavam em defesa da “empregada que dorme no emprego”, como uma necessidade da mulher que trabalha fora. Uma amiga que pedia ajuda para encontrar a empregada ideal dizia: “Mas eu preciso de alguém que acorde mais cedo que eu para preparar o café da manhã, ir buscar o pão na padaria e cuidar do bebê! Eu tenho que estar no escritório às oito-e-meia e não dou conta de fazer tudo isso!” A empregada em questão, deveria preparar as refeições para o casal e seus três filhos, cuidar da roupa, da casa e só ir se deitar após limpar a cozinha do jantar. “Mas veja bem, em casa eu tenho máquina de lavar roupas, não precisa lavar na mão, e durante o dia ela pode descansar se quiser, eu pus até uma televisãozinha no quarto da empregada!”

Nos estudos sobre o movimento abolicionista pouco se registrou sobre a resistência feminina ao fim da escravidão, ainda que trabalhos como o de Sandra Graham, Proteção e Obediência: Empregadas e seus Patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910 (Companhia das Letras, 1992) explore o delicado universo das relações entre as senhoras e suas criadas. O que se sabe é, que de uma maneira ou de outra, as mulheres da classe superior mantiveram suas criadas, a ponto de algumas famílias ainda hoje se orgulharem de haverem mantido duas ou até três gerações de mulheres da mesma família como suas empregadas domésticas, muitas vezes “emprestando-as” ou “cedendo-as” às suas filhas ou noras recém-casadas. A ascensão da classe média no Brasil, que se dá principalmente após a Segunda Guerra Mundial, assimila a figura da empregada doméstica como elemento necessário  ao bem estar da família e perpetua essa exploração.

Um jantar brasileiro, Jean Baptiste Debret, 1827
Um jantar brasileiro, Jean Baptiste Debret, 1827

Ao mesmo tempo, a gradativa conquista dos direitos das mulheres: educação, liberdade e trabalho fora de casa, apoiou-se na presença dessas outras mulheres, a quem os mesmos direitos são negados, para realizar os trabalhos que eram considerados como “escravizantes” para as esposas e filhas das classes superiores. Em outras palavras: enquanto muitas mulheres estavam em reuniões e passeatas para a conquista de direitos, em suas casas havia outras mulheres (muitas vezes ainda meninas de 10-14 anos) cuidando de crianças, casa, roupa e comida sem qualquer direito ou mesmo a noção de que a propaganda feminista pudesse se estender a elas.

A ordem oligárquica não exclui as mulheres, ao contrário, as mulheres são parte determinante para a reprodução de qualquer ordem, tanto quanto os homens. Nos dias de hoje, para muitos, a presença feminina no mercado de trabalho requer a existência da empregada doméstica, no antigo modelo da criada. Não apenas para as mulheres, mas para os homens, que não querem se ocupar com tarefas domésticas, e para gerações e gerações que cresceram neste país sem nunca terem que esfregar o chão em que pisam.

Na África do Sul, a legislação que regulamentou o trabalho das empregadas domésticas, extendendo a elas os mesmo direitos que a todos os outros trabalhadores foi uma das primeiras medidas tomadas pelo então presidente Nelson Mandela, em 1994, reconhecendo naquele modelo de exploração da mão-de-obra os elementos-chave de um sistema baseado em privilégios de cor, nascimento e classe: o Apartheid. Mais uma vez o Brasil é o último país a decretar a abolição. Atrasada na história, a sociedade brasileira luta para superar o banzo pós-abolicionista e finalmente aceitar que a liberdade é condição irmã da igualdade.

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Elaine P. Rocha é historiadora formada pela Universidade de Taubaté, com mestrados pela PUC de São Paulo e University of Pretoria, África do Sul, e doutorado em história social pela USP. Professora de História da América Latina na University of the West Indies, Barbados.

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