ETIQUETA E HIGIENE

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Nos dias de hoje, muitos podem pensar que a associação da palavra higiene com etiqueta é descabida, mas muito do que defendemos como hábitos saudáveis de higiene já foi um dia considerado como refinamento e educação.  Quando se fala em etiqueta logo pensamos em manuais e regras, que de acordo com muitas pessoas não passa de simples frescura.

Gostamos de dizer, mesmo que nunca tenhamos parado para pensar nisso, que somos civilizados. Logo, o comportamento que acreditamos ser superior e adequado se encaixa neste conceito, em contrapartida, tudo que se opõe a estes padrões logo chamamos de incivilizado ou qualquer outro sinônimo para caracterizar aquilo que consideramos indesejável.

Quando caracterizamos a História como estudo do homem ao longo do tempo, utilizando-se da frase proposta por Bloch, temos que ter em mente que os nossos comportamentos também foram construídos ao longo do tempo. Nossos hábitos são frutos sociais. Mesmo que queiramos tentar fugir de todos os padrões, alguns aspectos estão tão arraigados em nós que defendo que tal atitude seria impossível. Aqui vão alguns exemplos: escovar os dentes, tomar banho, urinar no vaso sanitário são, antes de tudo, um hábito. Alguém estaria disposto a abandoná-los?

Norbert Elias

Norbert Elias foi um sociólogo alemão nascido em 1897 que veio a falecer em 1990 e, segundo ele, a principal tarefa da sociologia é “alargar nossa compreensão dos processos humanos e sociais e adquirir uma base crescente de conhecimento mais sólido acerca desses processos”, de acordo com este princípio, como estudar História abrindo mão de uma ferramenta tão importante como a sociologia? Em seus trabalhos, Elias faz uma abordagem de caráter crítico a respeito dos indivíduos e da sociedade analisando a sua relação e formação dos costumes.

Sobre a ideia de civilização, além de todos os alertas necessários ao se abordar esta temática, Elias diz que “este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo”, portanto, este termo está indissociável do julgamento de valor e de uma ideia de superioridade.

Um dos princípios em nossa sociedade é o de que todos são iguais perante a lei, mas se na lei e nos julgamentos fica difícil de garantir essa ideia de igualdade, no nosso cotidiano não há ao menos esta tentativa, pois, o que queremos de fato é tornarmos diferentes, seja pela roupa, pelo cabelo ou pela postura, em outras palavras, o nosso comportamento é uma das melhores formas de nos distinguirmos.

Em nome desta distinção surgem orgulhos e grupos que se organizam em torno de um grupo de características básicas. Não se confundam: o desejo de diferenciação não surge para que possamos nos isolar, mas sim, para que primeiramente possamos nos identificar com um grupo considerado mais importante e, dentro deste grupo sermos reconhecidos em uma posição de destaque, começando, neste momento, um novo processo de diferenciação. Para quem achou todo este mecanismo repugnante e frívolo demais, resta uma observação maior no nosso cotidiano.

A nossa sociedade nem sempre se comportou da mesma maneira como se comporta hoje. Para entendermos melhor vale uma observação em um tratado de 1530 escrito por Erasmo de Roterdã conhecido como “De civilitate morum puerilium”, nesta obra era descrito o comportamento das pessoas em sociedade. Aqui vão alguns trechos:

Erasmo de Roterdã

“O olhar esbugalhado é sinal de estupidez, o olhar fixo é sinal de inércia […] Não é por acaso que os antigos dizem: os olhos são espelho da alma.”

“Não é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.”

“Não exponha sem necessidade as partes a que a Natureza conferiu pudor.”

“Não tenha receio de vomitar, se a isto é obrigado.”

“Não deve haver meleca entre as narinas. O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão […] é mais decente pegar o catarro em um pano, preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o pé . O mesmo se aplica ao escarro.”

Rainha Elizabeth

Sentiram nojo ao ler? Pois bem, o que nos enoja também foi construído socialmente. E não é exagero não! Pois como Roterdã alerta estes atos não são educados e devem ser banidos. Hoje, tornou-se tão natural adotar determinados hábitos que não chamamos mais de etiqueta, mas sim de higiene e, por isso, atitudes contrárias nos parecem incivilizadas.

A frase “A sujeira é um hábito” não costuma agradar, mas, fazendo uso desta frase de Emanuel Araújo podemos pensar que se grande parte da população ainda joga lixo na rua é porque, apesar da campanha que existe contra este comportamento, esta ainda não se tornou uma atitude habitual, sendo assim, estamos acostumados à sujeira. Quantos não olham cidades limpas e se espantam?

Dentre outros guias de educação e etiqueta, destacam-se algumas recomendações:

“Um homem refinado não deve arrotar na colher quando acompanhado. É assim que se comportam pessoas na corte que praticam má conduta.” (Tannhäuser – XIII)

“Evita à mesa limpar os dentes com a faca.” (Contenance de table)

“É indelicado cumprimentar alguém que esteja urinando ou defecando….” (Roterdã)

“Que ninguém, quem quer que possa ser, antes, durante ou após as refeições, cedo ou tarde, suje as escadas, corredores ou armários com urina ou outras sujeiras, mas que vá para os locais prescritos e convenientes para se aliviar.” (Regulamentos da Corte de Brunswick, 1589).

No Brasil, o desejo de tornar o povo civilizado fez com que padrões europeus fossem imitados a fim de refinar o brasileiro e livrá-lo do estigma indígena. Afinal de contas, não queríamos ser conhecidos como bárbaros.

O que deve ficar claro é que por mais que o conceito trabalhado esteja vinculado à ideia de superioridade, nem sempre coisas consideradas boas são agregadas com estes modelos. O Brasil que possui características climáticas tão diferentes dos países europeus adotou um modo de vestir tão contrário às nossas necessidades. E mesmo que as pessoas tivessem consciência de que a roupa e outros costumes não fossem adequados para o nosso meio, ninguém, ou talvez poucos, tinham coragem de contrariar os hábitos sob o risco de ser considerado atrasado ou inferior.

Hoje, mesmo que possamos receber muito mais informações e nos esclarecer, por vezes, não sabemos a origem do nosso comportamento e prezamos muito mais pelos hábitos de higiene. A ideia de superioridade e inferioridade ainda persiste e, como na História não podemos fazer julgamento de valor, lembrando que não existem sociedades melhores ou piores, mas sim modos diferentes de se viver, devemos desmistificar qualquer visão preconceituosa que prejudique a interpretação dos processos históricos.

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Fabiana Cabral Pazzine é professora de história. Pesquisadora de História Cultural e Social.

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