DÉCIMO PRIMEIRO MANDAMENTO: AMA TEU VIZINHO COMO A TI MESMO

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O que achamos sobre os outros diz muito sobre o que somos. Quer um exemplo? No Amazonas ainda existe uma rixa em relação ao Pará. Diz-se que o paraense é preguiçoso, ladrão, gosta de farinha e comer jacaré. Vejamos: o hábito de comer farinha e jacaré nos foi herdado pelos povos indígenas, bem como o estilo de trabalho que não segue os padrões da sociedade ocidental e capitalista (que faz com que ela o taxe como “indolência”).  O que se critica então é a maior aproximação com os povos originais dessa terra? Como se no Amazonas os traços indígenas fossem apagados do comportamento local…

Quanto ao “ladrão”… reza uma lenda urbana que segundo levantamento feito nas delegacias amazonenses na década de 50, 80% dos presos vinham do Pará. Lenda urbana, ou seja, sem qualquer comprovação. E mesmo que fosse comprovado, isso basta para chamar todo paraense de ladrão? Na cidade de Manaus, a maioria de seus habitantes vem de outros estados, sendo o Pará um deles. A procura por oportunidades de trabalho e o alto custo de vida nessa cidade pode levar algumas pessoas ao caminho do crime, mas não todas.

Schwebel, João André. Cidade de Belém do Grão-Pará: prospecto do poente. 1753. 1 desenho. Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro. In: Belém do Pará. Belém: Alunorte. p. 108

Qual é o âmago da questão? De onde vem esse ódio? Talvez tenha raízes históricas. Afinal, até o século XIX, o Amazonas estava sob o domínio do Grão-Pará, sendo Belém o porto mais rico e bem aparelhado da região Norte. Com a instalação da Zona Franca em Manaus, o polo regional migrou para o Amazonas. Então, essa rixa se trata na verdade de uma revanche histórica? Ou é puro bairrismo?

Mais um exemplo: Rio de Janeiro e São Paulo. Qual a imagem que temos do carioca? Malandro. E do paulista? Trabalhador. Isso implica que o carioca é pouco afeito ao trabalho ao contrário do paulista. Por ser disciplinado e produtivo, São Paulo é o motor do país, enquanto o Rio de Janeiro permanece como capital cultural da nação. Como carioca, não sabem o quanto me coço quando ouço alguém repetindo essas palavras…

Ora, vejam só: esse discurso não é de hoje, mas quando a República dava seus primeiros passos no Brasil. Naquele momento onde as oligarquias paulistas eram alimentadas com o lucro do café, mas precisavam consolidar o seu poder, principalmente no nível federal. Símbolo disso seria a própria metamorfose da capital: de centro urbano modesto com feições coloniais ainda para metrópole antenada com o resto do mundo (o que significa dizer que estava vinculada com tudo que era moda na Europa). A nova cidade se contrapunha a velha capital federal, que até 1889 foi sede da Corte que tanto temia o avanço do poder da então província de São Paulo.

Interessante que o Rio de Janeiro, por sua vez, foi beneficiado justamente pelo período posterior á República Velha: a Era Vargas. Com ascensão do grupo de políticos que cercavam Getúlio Vargas temos uma política de centralização: um centro político, um centro cultural. E coube ao Rio de Janeiro essa tarefa. O primeiro passo foi a modernização do traçado urbano. O segundo passo veio numa defesa parcial da cultura popular, através da reabilitação de figuras populares, prova maior, segundo o discurso oficial, de que Vargas era um presidente preocupado com o povo.

Rio, cidade maravilhosa. De Militão Santos

O malandro, o sambista, o jogador de futebol: personagens do cotidiano dos morros e dos bairros mais tradicionais. Era uma identidade que Vargas e seus intelectuais procuraram estender, aliás, para todo o Brasil. Nasce assim o mito da “Cidade Maravilhosa” que nos versos de André Filho é tida como “coração do meu Brasil”. Ao Rio de Janeiro, desde os anos 70 e 80, coube uma nova taxação: cidade violenta. As organizações criminosas (esquadrões de extermínio, facções de traficantes e agora milícias) que se instalaram nos morros e na Baixada Fluminense consolidaram seu poder nos anos 90 e a opinião pública acompanhou esse processo abertamente através das ações do Comando Vermelho ou de casos como a Chacina de Vigário Geral.

O ressentimento pode ser sentido não só entre estados vizinhos, mas mesmo em regiões. É o caso da Região Norte em relação ao Sudeste, referido quase sempre com o termo genérico de “Sul”. A explicação novamente está na História: com o último suspiro da borracha, a Amazônia apelou incisivamente para o Estado, mas como as oligarquias paulista e mineira eram mais fortes, suas reivindicações foram proteladas. Apenas durante o regime militar, a Amazônia passa a ser atendida pelo Estado, ainda que essa preocupação partisse da ideologia de segurança nacional e não respeitasse algumas características da região.

São Paulo. Ilustração de Zansky, Folha Turismo, 19-1-2010

Esses preconceitos e rixas regionais, na realidade, são uma espécie de efeito colateral do processo de formação do Brasil. Claro que em alguns casos eles passam a ser legitimados por todo um referencial teórico, digamos assim. O discurso de “São Paulo: motor do Brasil” e do “Rio de Janeiro: Cidade Maravilhosa” denotam muito bem isso. O bairrismo tem um imenso potencial para projetos ideológicos porque é uma forma primária de identidade. Ele, com todos seus juízos de valor e apelos, é mais digerível e pode mobilizar uma comunidade a agir contra outra, como um bloco. A História ajuda a revelar os usos e abusos do bairrismo, portanto, desatar esses nós é mais que um dever educacional para o historiador, é um compromisso ético.

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

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