Monteiro Lobato em Areias

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Saúva, sapé e cavalinhos de pau: o centenário da estadia de Monteiro Lobato em Areias

Por João Gabriel Rosa de Almeida

 

(…) “O Dr Lobato era um grande homem”. Falso, falsíssimo. Eu não era coisíssima nenhuma, nem sequer um promotor decente.

 

Monteiro Lobato, Cartas Escolhidas

 

O ano de 2007 marcou o centenário da chegada de Monteiro Lobato a sossegada Areias onde permaneceu na condição de promotor público entre 1907-1911. O escritor inspirado na localidade criara as cidades marasmáticas de Itaoca, Itapuca e Oblivion, nas quais transcorrem os contos da coletânea Cidades Mortas, publicada anos mais tarde, em 1919.

A obra Cidades Mortas retrata a estagnação sócio-econômica da região cafeeira do Vale do Paraíba, quando da expansão do cultivo do produto, em fins do século XIX, para as terras férteis do Oeste Paulista. As reflexões e denúncias do escritor foram julgadas pelos areienses como insultos à cidade natal e sua população. Em contrapartida, os relatos memoriais expressam uma carga emocional muito forte, revidando o epíteto de “cidade morta”, inventado pelo literato para seus debiques a Areias. Decretando o município mortiço, Lobato condenava seus moradores ao estigma de mortos-vivos que perambulariam por ruas fantasmagóricas:“Monteiro Lobato é responsável pela má fama da cidade porque ele a colocou no  Cidades Mortas. Então, quem não conhece Areias acaba lendo aquele livro…nem vai querer saber como é a cidade…

info-cidadesmortasD. Diná Sampaio Maciel, uma das filhas do tabelião e músico areiense Julinho Sampaio, único a quem Lobato considerava seu amigo na localidade, relembrou: Papai era seu melhor amigo. Mas ele foi ingrato porque veio como promotor, viveu  muitos anos aqui, casou, teve filhas e depois fala mal de Areias…cidades mortas, eh![1]

Por sua vez, a geração mais nova também rememoraria alguns censores de Lobato afastados no tempo e no espaço: D. Tunica não gostava e não aceitava muito o fato dele ter escrito aquele livro Cidades Mortas. Achava que por ele ser um cidadão que veio trabalhar em Areias, era porque precisava trabalhar e a cidade o recebeu muito bem. Então, ele jamais poderia falar mal da cidade através de suas estórias. Ela se ofendia com aquilo. Também é coisa de gente de idade. Talvez, ela não quisesse ou não conseguisse interpretar de outra forma. Ele colocou cidades mortas, não fala só sobre Areias. A dona Tunica dizia que o livro falava muito de cachorros pelas ruas daqui: “Até parece! Onde já se viu isso! Parece até que só mora cachorro na cidade e quando ele precisava das pessoas? Disso ele não se lembra[2].

O depoimento de D. Tunica Penna corrobora nossa hipótese de que uma memória negativa fora construída a partir do livro semificcional Cidades Mortas. Na obra, há uma alusão a cachorros caminhando livremente pelas ruas da imaginária Oblivion. Em “Os Perturbadores do Silêncio” (1908) são narradas as peripécias do espalhafatoso Carrinho da Câmara, o veículo mais importante da cidade morta, raramente requisitado para o combate  aos olheiros de saúvas. Seu condutor, o mulato Isaac Toco-de-Vela, o enchia com garrafas de formicida, enxada e fósforos, atravessando as vias de Oblivion em busca do formigueiro: De sobrecenho carregado, Isaac leva o olhar atentamente fito à frente – para “evitar algum desastre.” Nas ruas desertas apenas um ou outro cachorrinho se estira ao sol. Isaac, a vinte passos, divisando o vulto de um, pára, ergue a mão em viseira, firma os olhos.(…)  – Diabo! A mó’ que é o “Joli” do Pedro Surdo? – E com um pedra o espanta: – Sai porquera! Não “ouve” o carro? Não têm medo de morrer masgaiado? E, convencido de que salvou a vida a um cristão, (…) retoma os varais e lá segue por Oblivion afora, nhem-nhim, nhem-nhim (…) Muita moça nervosa deixa a costura e tapa os ouvidos.(…) não obstante, o terrível veículo passa (…) todo de ferro e ferrugem nhem-nhim (…) e enquanto o carrinho da Câmara não torna ao depósito municipal, o Silêncio não reentra na posse dos seus domínios.[3]

Antiga Câmara Municipal de Areias. (areiasturismo.blogspot.com)
Antiga Câmara Municipal de Areias. (areiasturismo.blogspot.com)

De qualquer modo, o centenário da passagem do desafeto Monteiro Lobato não é evocado pelos moradores de Areias que preferem esquece-lo. Ao que consta, somente a ong Oblivion, que implementa projetos sociais na localidade, irá comemorar publicamente a data com vários eventos ao longo de 2007. Não é para menos, Oblivion, como vimos, é uma das cidades caiongas da obra lobatiana inspirada no macambúzio cenário areiense na primeira década do século passado. Mas, ao contrário do ocaso descrito pelo literato em Cidades Mortas, a Areias não é para os representantes daquela associação a esquecida “vovó entrevada, sem netos, sem esperança, humilde”. É uma cidade viva, pulsante que enfrenta quotidianamente os infortúnios, buscando sobreviver.

Doutor sem Anel de rubi

Cidade sem crimes, Areias não necessitava de promotor. O sapé, a samambaia, a saúva devastando os campos; os cafezais extintos, o comércio minguando ao redor da igreja matriz, as ruas fantasmagóricas atravessadas de quando em vez por um carro de boi ou algum cão taciturno, a miséria dos caboclos ebriantes e opilados; os casarões decrépitos, palácios da cidade morta, descortinavam uma Areias decadente. Sua economia assentava-se na produção de aguardente, de cereais e de café, cuja colheita anual atingia cerca de 80.000 arrobas. O movimento comercial do município, distante 12 km da ferrovia Central do Brasil, realizava-se em lombo de burro, pela estrada que o liga a Queluz. Em 1907, a população totalizava 8.858 habitantes, sendo 4302 homens e 4556 mulheres, superior a de São José do Barreiro, a de Bananal e a de Queluz, cidades vizinhas. A receita alcançava a soma fala1

O bacharel percebeu a reverência ao cargo que ocupava numa cidade agonizante: Logo que cheguei fui à berlinda. Fiquei o bicho raro da terra, o ‘fait divers’ sensacional, a coisa importante, o escândalo do dia. “O Promotor!” Sentia-se tal como um camelo do Rio de Janeiro a passear pelas ruas, anunciando a água de Caxambu[5]. Ao segundo dia, sem se preocupar com o status e em plena a Sexta–feira Santa, saiu à rua relaxado, de calça de brim, sem coletes e sem punhos[6]. Ausente do dedo o anel de rubi, costume ostentado pela tradição bacharelesca. Dona Tunica Penna Canova, areiense contemporânea de Monteiro Lobato, testemunhou os hábitos do promotor: Eu tinha sete ou oito anos quando ele aqui chegou. Todos esperavam um almofadinha. Afinal, era neto de Visconde. Mas que nada! Suas roupas eram tão simples quantos seus hábitos. (…) ele não largava uma calça branca de linho e andava com a camisa fora das calças, vendendo farinha como se dizia.[7]

O cotidiano de Lobato era monótono. Dormia às nove horas da noite e somente despertava às 8 horas da manhã, uma das maneiras encontradas para consumir o tédio. Quando não cumpria diligências ou despachava no Fórum, entretia-se com a leitura de obras literárias, sobretudo, de língua inglesa. Pintava aquarelas, rascunhava desenhos, escrevia contos, correspondia-se com a noiva e alguns amigos. Neurastênico com o ramerrão da cidadezinha, o promotor dirigia-se a fazenda Orizaba, a mais alta do município, de propriedade da família Leme. Lá, passava dias, caçando, comendo pinhão cozido, mandioca frita e fotografando a paisagem, seu hobby predileto.

Circo de escavalinhos

A tradição católica movimentava a vida urbana de Areias com vigoroso e colorido calendário de comemorações: Páscoa, Dia do Senhor Morto, Espírito Santo, N.S. das Dores, Aparecida e Sant’Ana. Rompia-se a monotonia com as alvoradas, procissões, circo de cavalinhos, leilões, foguetórios e a queimação de Judas no Sábado de Aleluia.

Em todas as festividades, havia os cavalinhos de pau, invariavelmente armados no Largo da Matriz. A grande sensação para meninas e moças que os lotavam, após os leilões, ouvindo a Norma, única melodia do realejo:

Purezinha.
Purezinha.

Se soubesses [Purezinha] a importância extraordinária que a festinha mais modesta tem para vida monótona de Areias, não caçoarias da convicção com que falo delas.(…) há família de roceiros que vem de cinco léguas de distância para ouvir a música do realejo do cavalinho de pau! Sentam-se no chão e durante três dias deleitam-se e divertem-se como ninguém…[8]

Outro evento digno de nota era a passagem do circo de bolantins, uma das mais antigas formas de distração popular. Com a decadência da cidade, o aparecimento do circo de “escavalinhos”[9] provocava furor em velhos nostálgicos e crianças: Não calculas [Purezinha] que acontecimento é isso para Areias. Há dez anos tal não sucedia! Crianças, meninas taludas, choraram de medo do palhaços, que pela vez primeira viam.”[10] Já o setuagenário Comendador da Ordem da Rosa Miguel Alves Marques encantava-se com as pernas da trapezista, elogiando sua silhueta por três dias consecutivos. As reprimendas de sua esposa aos seus comentários de nada adiantavam. Maliciosamente, as rebatia: – Que importa a casca se o pau é de cerne?[11]

Concorria-se muito nos leilões de animais e prendas. Nestes, além do comezinho, a garrafa de vinho do porto, houve um objeto que fez sucesso, um penico do tamanho de uma xícara, arrematado por 3 mil-réis[12]: Os animais, porcos, cabritos, galinhas eram guardados no barracão dos leilões num cercado de bambu feito embaixo do estrado de música, de maneira que a bicharada, de vez em quando, entendia de colaborar com a banda, e saía  uma combinação original. E sempre que se davam...[13]

Nos leilões, havia sempre uma arquibancada reservada para as moças onde o promotor costumava sentar-se, arrematando prendas. Alguns testemunhos, enfatizam que a maior diversão do Doutor Lobato era fazer pilhérias durante essas festas religiosas:

Certa vez,estava sendo leiloada uma pata quando, de repente, surgiu a Niquinha, a moça mais bonita da cidade. Com vestido largo, de linho branco, Niquinha chegou na pracinha da matriz com ar triunfal, sorriso irresistível e cabelos ao vento. Sabia que estava agradando. (…) Lobato se aproxima: – Como você está bonita com este vestido, Niquinha! Mas cuidado. O branco é uma cor ingrata, qualquer poeira aparece.(…) – Para ser sincera, doutor Lobato, eu não estou nem esbarrando nos outros com medo de sujar o vestido.(…) Quando Niquinha se afastava, o leiloeiro erguia a pata. (…) – Quem dá mais, quem dá mais?(…) Lobato, mais que depressa, respondeu. (…) – Dez mil-réis para a Niquinha levar! (…) A moça ficara vermelha, gaguejava. Em coro, todos gritavam diante da indecisão “leva, leva, leva”. Desajeitada, ela levantou a ave pelas asas que, debatendo-se, sujou seu vestido novo, feito especialmente para a festa[14]

As relações sociais do jovem promotor limitavam-se a cortesias formais ou cumprimentos cerimoniosos. Na semana de sua chegada, houve um baile na casa do Comendador Sampaio em sua homenagem, embalado por valsas e polcas, recitativos e brinquedos de adivinhação. Aliás, na época, Areias contava com apenas quatro pianos, consoante Lobato, todos verdadeiras marimbas, pois, o último afinador dos instrumentos morrera em 1886.

Prestigiado pela população, Monteiro Lobato abriu o livro de visitas na inauguração da Santa Casa do município, em abril de 1907, mas queixava-se da ausência de amizades verdadeiras, de conversas edificantes e do ambiente entorpecedor.

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Alguns moradores idosos rememoram um promotor excêntrico que passava longo tempo “conversando” com as galinhas que tinham o nome de suas ex-professoras dos tempos colegiais ou tipos populares de Areias[15]. Além disso, assumia um comportamento oposto as normas sociais vigentes, não freqüentava, assiduamente, nenhuma casa de família: Ele andava sempre a cavalo visitando as fazendas. Só que, ao invés de ficar conversando com os proprietários, ficava horas com os colonos. Nem na sede da fazenda entrava para tomar café. Todo mundo achava que ele era meio pancado da cabeça[16].

Para outros entrevistados, o promotor era um desavergonhado dado o desleixo de suas roupas nada condizentes com a distinção de seu cargo: Naquele tempo, homem decente punha camisa dentro da calça, estando em casa. Na rua, só se saía de paletó e gravata. Mas Lobato nem sapatos usava. Andava sempre de chinelos e velhos.[17]

Cartas de Amor

Monteiro Lobato enviaria longas cartas à noiva D. Purezinha, evocando solidão e nostalgia, nas quais descrevia suas impressões da comarca onde viveria por quatro anos, procurando uma remoção: (…) Areias é uma calamidade. Só nela existem três coisas que deixam saudades a quem sai: O Dr. Hermógenes [juiz], a cadeira de balanço dos Miller e o banheiro do Sr. Carvalho[único que possuía chuveiro]. A nossa vida aqui é curiosa;  temos duas caras; uma para os Areanos, outra para nós mesmos. Para aqueles vivemos a gabar-lhes a cidade, o povo, a vida social, etc; entre nós, quando ninguém nos ouve, rompemos os diques do desabafo e damos para o diabo Areias, areanos e o mais.[18]

O conjunto das cartas dirigidas pelo jovem Monteiro Lobato à noiva Purezinha entre 1907 e 1908, ano em que se casaram e foram viver em Areias, acabou publicado na coletânea póstuma Cartas de Amor (1965), adensando ainda mais a memória negativa do “ingrato”promotor.

Porteira aberta. Aquarela de Monteiro Lobato dedicada a Purezinha
Porteira aberta. Aquarela de Monteiro Lobato dedicada a Purezinha

A coleção perfaz cerca de 91 cartas, escritas em Areias e que registram os tipos, as situações e os acontecimentos vivenciados na cidade. Nas missivas, Lobato não poupava críticas a decadência e monotonia de Areias: Ontem à noite tivemos um forte temporal inçado de relâmpagos e trovões. E foi esse o fato importante que ocupou a atenção de Areias hoje. Ali pelas 4 horas, quando a chuva se amontoava no céu em grossas nuvens prestes a desabar, em todas as casas se enchiam as janelas. Porque em Areias, Purezinha, ver chover é uma distração…[19]

A população local, contudo, ainda se recorda do tom sarcástico de Cartas de Amor, que reforçou a desafeição por Lobato. A moradora Silvana Costa, reportando-se ao livro, afirma: (…) Em “Cartas de Amor”, ele diz que nada se comparava a cidade a qual ele se refere não sei se São Paulo ou Taubaté. Acho que é Taubaté. Que nada se comparava, nem as mulheres: “ninguém é igual a tu Purezinha! Elas não se vestem como você”(risos).[20]

Promotor de Itaoca

A remoção pleiteada pelo Visconde de Tremembé tornou-se morosa. Enquanto os arranjos para a transferência transcorriam, Monteiro Lobato, desiludido, dispusera-se a advogar pretendendo elevar suas rendas para contrair matrimônio com Purezinha. A imaginação do escritor flui na linguagem bacharelesca e retórica dos tribunais. Em um dos processos para ironizar as acusações aos seus clientes, fez constar os curiosos vocábulos urupês, com o qual dez anos mais tarde batizaria seu livro de estréia nas letras nacionais e o outro, oblivion, nome dado a uma das cidades imaginárias da obra Cidades Mortas (1919): (…) Esta ação é um monstro teratológico. (…) As monstruosidades irão brotar como urupês em pau podre, após um dia de chuva.

Ilmo. Julgador, vê desta rápida análise, que os Réus tinham razão de, no começo desta, classificar esta ação de monstro teratológico. Não tem pernas, não tem braços, não tem cabeça. E merecia, em vez do oblivion duma estante de escrivão, ir figurar no Museu do Ipiranga, dentro de um alentado vidro de álcool[21].

Monteiro Lobato resolveu não mais esperar pela transferência. Decidiu casar-se em 28 de março de 1908 na cidade de São Paulo. A lua-de-mel transcorreu nas praias idílicas de Santos. Na ausência do promotor licenciado, que sempre se queixou da monotonia, uma efeméride mobilizaria a população de Areias: a passagem do conde francês Lesdain na primeira viagem de automóvel do Rio de Janeiro a São Paulo, entre março e abril, num Brasier 14 C.V. Retornando à cidade, o Dr. Lobato passou a residir em um sobrado próximo à Matriz Sant’Ana. Dedicou-se aos trabalhos de marcenaria, à leitura de obras literárias, à construção de um galinheiro no quintal, à pintura e à primogênita recém-nascida Marta. As aquarelas de Monteiro Lobato, em Areias, expressam uma visão bucólica do interior do país retratado em cores amenas e alegres que contrastam com o momento iráscivel em que criara o Jeca Tatu, em 1914.

Cidade de Areias, em 1953. Tibor Jablonsky, IBGE
Cidade de Areias, em 1953. Tibor Jablonsky, IBGE

Na cidade de Areias, o promotor não deixara de apontar as crendices dos caipiras. Encantou-se com as estórias dos piraquaras da vila fluvial do Salto, localidade com cerca de 80 habitantes. Impressionou-o, a lenda do “Minhocão”, espécie de serpente monstruosa submersa no Rio Paraíba[22]. Do mesmo modo o episódio do eclipse solar, ocorrido em 10 de maio de 1911, explicado pelos areienses como um dragão que, periodicamente, tentava engolir o sol, queimando a boca sem consegui-lo.[23]

Apesar disso, o promotor mostrava-se entediado das caçadas às suçuaranas na Serra da Bocaina, das invernadas na fazenda Orizaba e das pescarias com o sub-delegado Phídias. Passou, então, a traduzir as matérias do jornal londrino Weekley Times, do qual era assinante, enviando-as ao O Estado de São Paulo por dez mil-réis. Publicou também n’ A Tribuna, da cidade de Santos, Bocatorta, que consideraria o seu primeiro conto.

O ramerrão de Areias e a morosidade de uma eventual transferência desiludiam Lobato. Por volta de 1909, ele cogitou abandonar a carreira para dedicar-se ao comércio, Aliás, aquele ano culminou com trágico assassinato de Euclides da Cunha, em 15 de agosto de 1909, fato que comoveu Lobato. O jovem promotor não escondia o orgulho de ocupar em Areias, nos primeiros meses de sua chegada, o mesmo quarto que hospedara o falecido escritor, quando atuou como engenheiro público na construção de uma ponte.

A morte do Visconde de Tremembé abalara a vida soturna do promotor e de sua família, em 27 de março de 1911. Monteiro Lobato herdara a fazenda do Buquira nos recessos da Mantiqueira, abandonando sua profissão e a cidadezinha marasmática a qual nunca mais retornaria: Vou-me à vida livre do fazendeiro, criar porcos em vez de acusar réus, viver como bicho ou árvore em vez de como chapéu-de-sapo que o Dr. Washington desloca daqui para ali[24]

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A partida de Lobato da cidade de Areias não seria esquecida. Os censores do promotor rememoram: Daí a um certo tempo, ele colocou na cabeça dele que não teria por quê ele ser promotor de uma cidade que não tinha nada e continua nada (risos) que nem gente tinha para movimentar. Daí, ele gozava do pessoal. Quando foi embora vestiu a filha dele de vestido de bolinhas, descalça, com xuquinha no cabelo e foi embora, gozando da cidade[25].

Transcorrido quase um século da estadia de Monteiro Lobato em Areias, o desapreço pelo promotor não diminuiu. As reminiscências não se alteraram. A cidade morta de majestade decaída resiste. A ausente bordadeira Tunica Penna cometeu o vaticínio, apontando nas imponentes torres da igreja a flor-de-lis, símbolo da imortalidade: “Uma cidade assim protegida não morrerá jamais …”


[1] Entrevista com a senhora Diná Sampaio, depoimento dado ao autor em outubro de 2000.

[2]Entrevista com a senhora Débora Evangelista, depoimento dado ao autor em setembro de 2000.

[3]Monteiro Lobato, “ Os Perturbadores do Silêncio”, in: Cidades Mortas, op.cit, p.30-31.

[4] Almanak Laemmert (1911-1912)

[5] Ibidem, p.43.

[6]  Idem, p.42.

[7] Flávio Néry,  “As aventuras do moleque Lobato”, Valeparaibano, “Seção Roteiro”, São José dos Campos, 25 de outubro de 1987, p. 6.

[8] ibidem p.105.

[9] A população de Areias chamava circo de ‘escavalinho’, a mesma expressão empregada pela personagem da boneca de pano Emília: “Grande circo de escavalinho equestre e pedestre…”, Reinações de Narizinho, São Paulo, Brasiliense, 1954, p.151.

[10]Monteiro Lobato, Cartas de Amor, p.85.

[11]Monteiro Lobato, “O velho e a estrela”, in: Mundo da Lua, São Paulo, Brasiliense, “Obras Completas”, 1954, p.19.

[12]Monteiro Lobato, Cartas de amor, p.96.

[13] Ibidem p.104.

[14] Flávio Néry, “As aventuras do moleque Monteiro Lobato”, Valeparaibano, seção Roteiro, São José dos campos, 25 de outubro de 1987, p.12-14.

[15] Flávio Néry, “As aventuras do moleque Lobato”, Jornal Valeparaibano, Seção Roteiro, São José dos Campos, 25 de outubro de 1987, p. 6. Vale destacar que Ruth Sampaio Rio tinha nesta época 81 anos de idade.

[16] Ibidem.

[17] Flávio Néry, “As aventuras do moleque Lobato”, op.cit, p.6

[18] Monteiro Lobato, Cartas de Amor,  p.42.

[19] Monteiro Lobato, Cartas de Amor, São Paulo, Brasiliense, “Obras Completas”, 1965, p.98.

[20] Depoente Silvana Costa – Depoimento ao autor  em outubro de 2000.

[21]  Arquivo da Câmara municipal de Areias. A síntese do processo está nos “anexos”.

[22]Monteiro Lobato, Cartas de Amor, p.117.

[23] Idem p.61.

[24] Idem,  p. 305.

 

[25] Depoimento dado por Netinho ao autor em setembro de 2000.

 

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JOÃO GABRIEL ROSA DE ALMEIDA é mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em sua tese, discute questões de memória, projeção e narrativa. Para isso utiliza a figura de Monteiro Lobato, sobre a qual realizou, dentro desses temas, uma inédita pesquisa, já em vias de ser publicada.

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