FOLIÕES, GRAÇAS A DEUS!

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Fevereiro é o mês do sagrado e do profano darem as mãos: um final de semana nos prazeres mundanos e um dia para louvar a Deus. E essa dobradinha toma contorno mais acentuado na capital baré. Ás portas da tradicionalíssima Igreja de São Sebastião no sábado magro de carnaval a procissão é outra: foliões.

Acontece que no mesmo local  se situa mais adiante o Bar do Armando de onde surgiu nos anos 80 um dos blocos de carnaval de rua mais famosos da cidade: a Banda da Bica. Banda Independente Confraria do Armando para ser mais exato.

o tema da folia da Banda da Bica na fachada do Bar do Armando. (Frank Cunha/G1)
o tema da folia da Banda da Bica na fachada do Bar do Armando. (Frank Cunha/G1)

A cada ano uma marchinha é criada para satirizar algum episódio político local. Nesse ano o enredo, composto por Mário Adolfo, Edu do Banjo e Dudu Brasil,  foi “Olha que Confusão: o Ovo Esquerdo perdeu a Eleição”. Trata-se de uma alusão ao ovo atirado na candidata á prefeita Vanessa Graziottin no ano passado.

O carnaval de rua amazonense não deve nada aos blocos de São Luís do Paraitinga. Além da rainha e do rei momo, o panteão carnavalesco local conta com algumas entidades a mais como a Kamélia (com K mesmo). Essa boneca caracterizada como baiana abre o carnaval de Manaus há 70 anos! Após receber a chave do prefeito no Aeroporto Eduardo Gomes (antes o ato era realizado no Aeroporto da Ponta Pelada no Educandos), a comitiva com a boneca negra atravessa a cidade terminando seu trajeto no Botequim do Olímpico, clube a qual pertence a Kamélia.

Armando Soares, o portuga, já foi promovido á entidade carnavalesca. O dono do bar de onde saiu a Bica era conhecido por sua economia e pelo bom humor. Antes mesmo de falecer no ano retrasado, já tinha sido homenageado inúmeras vezes por seus admiradores, clientes ou não de seu bar.

E olha que o Portuga tem uma cópia fiel em forma de boneco, tal qual a Kamélia, que em dias de Bica, atravessa a multidão. Nesse carnaval, o boneco, bem como toda a folia, ajudou a aplacar um pouco da saudade que esta figura deixou em muita gente. Os biqueiros já se comprometeram a continuar com a tradição, o que é ótimo tanto do ponto de vista do lazer como da memória.

Kamélia, na recepção do carnaval de 2013
Kamélia, na recepção do carnaval de 2013

Já foi dito pelo escritor Márcio de Souza em seu livro A Expressão Amazonense que não há historiografia mais tradicionalista que a amazonense. Se a História se encontrava nos velhos gabinetes e nos feitos de vultos cheios de medalhas, ao povo coube a memória. Ela, sempre encarada como uma irmã pobre da História, preservou alguns aspectos da experiência popular nesta cidade nos últimos anos, principalmente no aspecto lúdico, onde a origem popular se faz mais evidente.

Mas Márcio Souza escreveu seu livro em 1977. Muita coisa mudou. Hoje a historiografia amazonense parece muito menos refratária à cultura popular e isso se deve a dois grandes movimentos que se complementam: o prestígio da História Social e Cultural e a globalização.  As classes sociais foram para escanteio e Cultura passou a ser a pauta do dia no meio historiográfico. Ora, nada mais compreensível num momento como o nosso, onde se fala em flexibilizar as fronteiras nacionais e identidades se reafirmam com maior força.

No Amazonas, a influência dessa corrente historiográfica inicia-se gradativamente a partir dos anos 80, quando o curso de História da Universidade Federal do Amazonas passa a se constituir. Nos estudos de Edinéia Mascarenhas, Luís Balkar Pinheiro, Maria Luiza Ugarte Pinheiro, Patrícia Sampaio, Francisca Deusa Sena Costa, dentre outros, percebemos uma nítida guinada para o lado cultural e popular de marcos historiográficos do Amazonas como a Cabanagem ou a Belle Epoque manauara.

Garantido, rival do Caprichoso, na tradicional festa de Parintins.
Garantido, rival do Caprichoso, na tradicional festa de Parintins.

E a globalização incide na Amazônia precocemente. Há quem diga que já em 1967, com a implantação da Zona Franca, ele teria desembarcado em terras amazônicas – lembremos que o modelo das zonas francas descentraliza a produção das multinacionais e incentiva o consumismo ao entulhar de mercadorias modernas seus trabalhadores. Uma coisa inegável: hoje ele está mais que acomodado aqui. Vejamos o caso do Boi Bumbá.

Esse folguedo popular ligado ao ciclo das festas juninas é creditado aos maranhenses que vieram para o Amazonas em busca da riqueza fácil nos seringais (um dos muitos contos do vigário da propaganda amazonense da época). Claro, aqui ele sofreu algumas pequenas alterações. Ao lado do Boi, de Catirina, Pai Francisco e Sinházinha surge agora a figura do Pajé que promete ressuscitar o boi, morto por acidente.

Houve um tempo em que a cidade era movimentada por estas festas. A paixão era tanta que quando cordões contrários se encontravam na rua a pancadaria era certa. Por muito tempo “brincante do Boi” e “marginal” foram palavras intimamente associados por conta dos confrontos que envolviam porradas, facadas e eventualmente tiros.

Percebendo o alcance popular, os governadores trabalhistas nos anos 60 passaram a estimular a festa. Os Festivais Folclóricos de Manaus, que compreendiam não só o Boi Bumbá, mas também quadrilhas de ciranda, se tornaram míticos, principalmente por conta das aparições triunfais de Plínio Coelho ou de Gilberto Mestrinho. O local onde eram realizados, contudo, foi encampado pelo Exército e hoje faz parte do Colégio Militar. Os festivais continuam, mas com menor força, uma vez que foram transferidos algumas vezes de lugar e perderam força para uma festa mais divulgada: o Boi Bumbá de Parintins.

Na ilha a poucos quilômetros de Manaus a disputa entre os Bois Caprichoso e Garantido é nacionalmente conhecida. Emissoras batalham entre si pelo contrato de transmissão da festa. Já existem camarotes especiais para celebridades nacionais e internacionais.  O glamour das fantasias e dos, digamos assim, efeitos especiais se sobressai á própria história. Ciente da paixão do amazonense, a Coca-Cola modificou seu design para agradar os dois lados: metade azul, metade vermelha. Ou seja, toda uma estrutura foi criada ao redor dos bois onde a prioridade não é o lazer da comunidade, mas do cliente, daquele que paga para assistir ou ouvir o evento.

Podemos chamar esse evento de popular? Acredito que o termo mais apropriado seja pop, uma vez que ele está mais integrado á indústria cultural que à comunidade parintinense. As cirandas de Manacapuru (AM) e o Sairé de Alter do Chão (PA) estão tomando a mesma linha. Muitos realizadores dos eventos se defendem dizendo que precisam de recursos para sobreviver. Antes de fornecer os recursos as empresas propõem suas condições e estas condições acabam por retalhar as festas. Então, pensando do ponto de vista dos homens envolvidos nestas festas, caímos em um dilema: ver a tradição cair seca ou manter a festividade, ainda que desfigurada?

Creio que o melhor seria conservar um equilíbrio entre ambas as partes, equilíbrio esse que só pode ser alcançado diante da pressão de seus brincantes frente às condições de seus patrocinadores. A palavra aqui seria negociação. Afinal isso não é apenas brincadeira. Estamos falando de uma parte importante da sociabilidade de uma região. Edward Thompson já apontava em seus estudos o poder de festas e alguns rituais camponeses na formatação de uma experiência histórica dos trabalhadores do campo. O antropólogo Sérgio Gil Braga se pergunta se festas como o Sairé, o Boi Bumbá ou o carnaval de rua amazonense podem ser proto-identidades. Portanto, brincadeira também é coisa séria.

Assim, volto-me à Bica. Se a irreverente banda já teve o aval da Igreja Católica, preservando um acordo de coexistência pacífica entre ambas, resta saber se terá o mesmo da indústria cultural. Em outras palavras, será que o carnaval de rua amazonense também será domado pelo capital? Espero que nossos brincantes continuem leais á seus princípios e seu desejo de folia. Que Armando nos ouça!

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

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