UM DÉSPOTA ESCLARECIDO NOS TRÓPICOS: ARTHUR REIS E SEU GOVERNO

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Para Platão a sociedade ideal era aquela onde os fortes combatem, os práticos administram e os inteligentes governam. No século XVIII, o Iluminismo defendia que o déspota esclarecido era o governante ideal. Já com Lênin fala-se em vanguarda, um grupo de pessoas sagazes que comanda a revolução. E o neoliberalismo elogia o tecnocrata, o especialista que deve decidir assuntos especiais. Em outras palavras, o que todo esse pessoal tem em comum é que estão afirmando que manda quem sabe e obedece quem tem juízo.

Quem deve mandar? O intelectual, porque ele tem conhecimento, ele tomará decisões sábias. Será mesmo? Muitos acham que o único compromisso do pensador é com o conhecimento (como Julien Benda), outros diriam que é com a mudança social (e aqui temos Marx, Gramsci, Bourdieu e companhia). Ultimamente, essa última tendência tem dado o tom da discussão; afinal hoje vemos intelectuais agindo na sociedade seja como formador de opinião ou mesmo tomando á frente de movimento sociais. O que dizer então de um intelectual no poder?

Arthur Cesar Ferreira Reis

Vamos dar uma passada em Manaus hoje para falar do caso de Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1990). Um dos maiores historiadores do Amazonas. Lançou a primeira tentativa de sintetizar a história regional, até então representada só por alguns poucos episódios, com 22 anos: o livro História do Amazonas. Boa parte de sua vida foi dedicada ao ensino, lecionando em colégios tradicionais de Manaus e até na Universidade Federal Fluminense. A partir dos anos 50, já intelectual prestigiado, passa a aceitar cargos públicos relevantes como chefe, por exemplo, na Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) – a mãe da SUDAM –  e no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Mas é na década seguinte que atinge maior reconhecimento ao chegar no cargo de governador do Estado.

Sobre o governo de Arthur Reis basta dizer que foi polêmico, na época e hoje. Isso porque estamos falando dos primeiros anos do regime militar, um período que trouxe transformações fundamentais para a região – ora, a Zona Franca taí para não me desmentir. O próprio Reis se mostrava desconfortável quando o seu governo se tornava assunto de conversas, preferindo passar uma temporada no Rio de Janeiro logo após o seu término em 1968.

Bem, precisamos levar em consideração alguns pontos. Primeiro, a linha de pensamento de Arthur Reis. Ora, o nosso historiador acreditava que só um Estado forte poderia salvar o Amazonas da decadência, por isso sua simpatia para com o governo centralizador de Getúlio Vargas e nacional-desenvolvimentista do regime militar. Percebemos isso inclusive na sua escrita da história: Reis encontra na Amazônia colonial (embora fale sobre o período imperial e republicano, esse será sempre o seu tema maior), dentre tantos elementos, um protagonista chamado Estado. É a ação do Estado português na sua colônia mais longínqua que faz com que o homem vença a natureza e construa uma sociedade estável. É disso que precisávamos para reerguer a economia regional, mas do Estado brasileiro e não mais ibérico.

Em segundo lugar, Reis precisava provar para os políticos locais que era um homem de atitude. Todos aqui duvidavam da sua capacidade de governar, uma vez que era ele mais um educador que um homem público. Só para constar, o nome de Reis não foi eleito, mas indicado e pelo então presidente. O marechal Castelo Branco era amigo do “mestre da Amazônia” das sessões do IGHB e confiava plenamente em seu pensamento. No entanto, Reis estava fora da sua terra há um tempo – só ficou sabendo de sua indicação quando pisou no Aeroporto do Galeão, voltando de uma palestra na Itália. Para todos os efeitos, era preciso provar que Reis foi eleito democraticamente pela Assembléia Legislativa. Os políticos locais desconfiavam da atuação do historiador, mas acataram as decisões de Brasília, como é de praxe. O então deputado Bernardo Cabral ousou contrariá-las, anunciando a candidatura de outro político. Foi ele o único voto contra.

Em junho de 1964, Reis é empossado governador e já encontra amostras de hostilidade. Depois de toda cerimônia de elogios, começam os primeiros comentários maldosos. E na imprensa, artigos de jornais independentes ou da oposição questionando a sua eficácia. Um artigo do jornal A Notícia compara o novo governador com um macaco numa sala de porcelanas. Reis descontente vai prender com sua guarda pessoal o dono do periódico, Andrade Neto, mas não o encontra em casa. Colérico, destrói os vasos de plantas da varanda. O episódio vira motivo maior de chacota, depois que ganha as páginas do Jornal do Brasil.

Cidade flutuante de Manaus, por volta de 1960

No ano seguinte, membros da Assembléia Legislativa questionam as decisões do governador sobre o orçamento do Estado e este manda fechar a Casa. Os deputados protestam. Temia-se que essa história descambasse em uma intervenção federal – afinal, um ano após a tomada do poder os militares já tinham enfrentado um caso parecido em Goiás de um governo estadual que estava lutando entre si. Mas Reis voltou atrás e os deputados que se pronunciaram se afastaram ou renunciaram seus cargos.

Outro ponto, Reis não precisava só provar aos deputados estaduais que, usando um termo da época, “tinha culhões”, mas ao poder federal também. Afinal, mesmo blindado por Castelo Branco o governador tinha que demonstrar rigidez na “causa revolucionária” e, portanto, prender os subversivos e corruptos.  Os subversivos eram fáceis de achar, quanto aos corruptos, difíceis de prender. Reis tentou mudar os quadros de servidores chamando estudantes da FGV para operar uma racionalização administrativa no funcionalismo público. Parece que pouco adiantou, uma vez que os velhos funcionários foram substituídos por outros, nem por isso menos oportunistas.

O próprio Arthur Reis estava cercado de pessoas que entendiam como preocupação ideológica a manutenção do seu cargo. Muitos denunciavam colegas de trabalho como forma de galgar novos postos. É a figura do “dedo-duro” que foi imortalizada pelo jornalista carioca Stanislaw Ponte Preta em suas crônicas.

O governo de Reis não foi só feito de autoritarismo e repressão, mas de um relativo incentivo á cultura e de crescimento econômico. Veja bem, eu disse crescimento econômico e não desenvolvimento social. Em outras palavras, nos enchemos de dinheiro, mas não o distribuímos. A Zona Franca de Manaus era um projeto antigo, da década de 50, mas que foi implantada mesma só com a ditadura militar, como forma de tirar a região da decadência do fim da borracha. A preocupação dos militares era perder a Amazônia para os subversivos, por isso investiram em infra-estrutura (Transamazônica, agrovilas, modernização do Porto de Manaus, etc). Mas falharam: o interior da Amazônia continua um vazio demográfico. A Zona Franca a todos ilude com promessas de enriquecimento fácil. Bem, hoje nem tanto, mas naquela época…

Cidade flutuante de Manaus, por volta de 1960

Quanto ao incentivo cultural: Reis passou a convidar artistas, de posições ideológicas distintas, para participar de seu governo.  Desde os senhores do Clube de Madrugada, movimento artístico que tentou agitar o Amazonas culturalmente com a proposta dos modernistas, até a rapaziada mais radical que estava surgindo na época. O jornalista Narciso Lobo acredita que essa medida não passa de uma tentativa de Reis consolidar sua imagem de homem liberal. Reis podia não entender, nem gostar de Glauber Rocha, mas reconhecia nele um grande diretor de cinema e por isso o convidou para fazer um filme promocional do Estado. Como Glauber tinha acabado de sair da prisão e tinha recebido um induto do regime (com a promessa de que voltaria para cela se continuasse fazendo protestos), aceitou. E assim surgiu Amazonas, Amazonas (1966).

O Festival de Cinema Amador do Amazonas, em 1966, também contou com seu aval. O vencedor foi o filme em preto e branco Carniça do fotógrafo Normandy Litaif. Um filme de protesto onde se mostra a miséria da cidade de Manaus.  Aliás, apesar da falta de recursos e de divulgação, os jovens realizadores e cineclubistas produziram muita coisa boa nesse período extremamente complicado. Reis também tentou incentivar a literatura por meio da instituição do Prêmio Estelita Tapajós e das Edições do Governo do Estado, com publicações de autores regionais.

Percebemos que esse é o único aspecto de seu governo que não está em conformidade com as diretrizes do poder federal: ser autoritário e nacional-desenvolvimentista eram características que Reis tinha em comum com o novo regime que tinha se instalado, mas valorizar a produção cultural da região não, porque os artistas nacionais nos anos 60 são pautados por uma posição muito politizada que bastava para serem taxados pelos conservadores como “inconvenientes”. Mas Reis não concebia o desenvolvimento econômico separado do cultural. Apesar do esforço, não conseguiu concretizar seu objetivo. O campo cultural continuou sendo dos mais difíceis de se viver em Manaus, apesar do talento e da energia de tantos artistas como Aldísio Filgueiras ou Joaquim Marinho. Em parte pelos poucos recursos, por outro lado havia também o provincianismo.

Analisando bem, veremos que apesar desse fundo cultural o governo de Arthur Reis não foge tanto á regra da ordem que se vinha construindo no Brasil. A repressão e a paranoia passaram a se tornar política de Estado. O professor Aloysio Nogueira, militante de esquerda desde os anos 50, lembra que nesse período o medo era tanto que se tornava mais eficiente que a repressão explícita. A auto-censura, por exemplo, impediu que se publicasse o livro Estado de Sítio do poeta Aldísio Filgueiras em 1968 – afinal, o AI-5 tinha acabado de ser instituído e a capa do livro era uma exposição militar.

Em suma, Arthur Reis foi o “déspota esclarecido do Amazonas” (palavras de Leandro Tocantins, amigo íntimo do historiador). Seu governo não podia ser mais controverso: abriu alguns canais de expressão, mas fechou outros; cresceu a renda, mas não distribuiu; modernizou a burocracia, mas nem tanto. Talvez a maior insatisfação de Reis tenha a de não ter conseguido povoar o interior do Estado e assim integrar a Amazônia ao Brasil, como tanto pregava em seus livros. Talvez por isso não gostasse de falar sobre o seu mandato.

Cidade flutuante de Manaus, por volta de 1960

O caso de Arthur Reis demonstra como um intelectual encontra dificuldades em traduzir a teoria na prática, ainda mais em se tratando da prática política. É preciso lembrar que os “homens de ouro” de Platão, os reis-filósofos, são tão passionais quanto as pessoas comuns porque são pessoas comuns. Acredito que o dilema todo está na confusão entre conhecimento e sabedoria. Conhecimento seria a capacidade crítica (concluir, interpretar, analisar, etc), enquanto a sabedoria seria a aplicação desse conhecimento na realidade. É possível ser sábio sem ter passado por uma faculdade, apesar do que dizem os tecnocratas. Afinal, a sensibilidade política se adquire com a experiência também. Então, voltemos ás perguntas iniciais: os intelectuais foram feitos para o poder? O poder corrompe a sabedoria? Penso que os intelectuais foram feitos antes de tudo para questionar o que está posto e com isso mudar a ordem social. Acabar com nossas mazelas sociais não passa só pelo poder. E o verdadeiro sábio não se deixa corromper por ele. Agora, até que ponto Arthur Reis foi sábio em seu governo deixo para vocês decidirem.

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

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