ESSA JUVENTUDE FARDADA… (I)

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Oswaldo Barbosa Guisard em seu livro Taubaté no Aflorar do Século nos fala do Tiro de Guerra 445. “Taubaté, como não podia deixar de ser pela sua tradição de vanguardeiro da luta pela solução dos magnos problemas nacionais, fundou o seu Tiro de Guerra 445, que chegou a contar com mais de 400 atiradores, inscritos, dando um grande exemplo para muitas cidades do País”. Bem, que “magnos problemas nacionais” são esses? E o mais importante: o que é um Tiro de Guerra?

Esse é o nome de um órgão do Exército que possui a finalidade de fornecer instrução militar e estudo para seus jovens ingressantes, com o apoio do governo municipal (geralmente o município contribui com as instalações enquanto o Exército fornece os instrutores, os uniformes, os livros e tudo mais). Essa instituição existe até hoje e é responsável pela formação de muitos reservistas.

Quanto aos magnos problemas nacionais, Guisard está se referindo á Primeira Guerra Mundial, a qual o Brasil não participou, uma vez que se declarou neutro, mas havia a possibilidade que ele entrasse no conflito internacional, principalmente após alguns navios mercantes brasileiros serem afundados por submarinos alemães.

Tiro de Guerra 212. Arquivo Público de Cotia

Na realidade, os Tiros de Guerra (TG) não foram criados após 1914, mas muito antes. Uma entidade militar foi criada em 1896, a Confederação Brasileira de Tiro, mas ela não saiu do papel. Só em 1902 o Brasil teria seu primeiro Tiro de Guerra (que naquele tempo tinha o nome de Linha de Tiro) graças á iniciativa de um entusiasta civil do Exército no Rio Grande do Sul. No entanto, foi uma longa campanha do Exército e de setores nacionalistas que fez com que os TG se consolidassem. A Primeira Guerra Mundial contribuiu muito para isso.

Do ponto de vista militar, o Tiro de Guerra era interessante porque ele atraía um segmento da sociedade muito importante: os filhos das elites locais. Um dos maiores problemas das Forças Armadas era o sistema de recrutamento que recaía sobre a faixa mais pobre da população ou entre a família dos próprios oficiais criando dinastias militares. Por uma série de leis, os bacharéis, padres e latifundiários eram isentos do serviço militar. Para que servir ao Exército se podiam servir á Guarda Nacional, onde podiam desfrutar do prestígio de ser coronel sem ter que passar pela eterna espera das promoções nas Forças Armadas?

Isso sem falar da vida nos quartéis. Brigas, roubos e bebedeiras eram as maiores queixas dos oficiais por conta de seus cadetes – a maioria recrutada contra a sua própria vontade ou então alistada apenas para conseguir uma educação de graça ou um emprego estável. E o que mais aterrorizava a população eram os relatos dos castigos. As leis do Conde de Lippe, célebre general do Antigo Regime francês, justificavam o uso do açoite, de surras de vara verde, dentre outras. Ora, basta nos lembrarmos da Revolta da Chibata. Ao tomar um navio, João Cândido e seus homens estavam se rebelando contra o preconceito racial e contra uma prática militar. O Conde de Lippe deixou de ser o referencial pedagógico das Forças Armadas somente em 1930.

Conde Lippe. Imagem: Wikipedia

José Murilo de Carvalho credita a criação dos Tiros de Guerra á uma tentativa das Forças Armadas nacionais se modernizarem do ponto de vista de recursos humanos. Era preciso ampliar o horizonte de recrutamento e num sistema político em que as oligarquias estaduais governavam (afinal estamos tratando da República Velha) o apoio das elites é essencial. Ernesto Seidl reafirma tal motivo, mas acrescenta outro: a importação de valores estrangeiros, afinal o Tiro de Guerra começou na Alemanha e nessa época o Brasil, dito culto, almejava ser como os países europeus.

A instituição só deu certo, contudo, porque as oligarquias e seus filhos abraçaram a ideia. E por que eles fizeram isso? Puro nacionalismo? Espírito cívico? Pode até ser, mas há uma causa mais profunda. Agora recorremos á Nicolau Sevcenko que ao analisar a construção de São Paulo enquanto metrópole, no início do século XX, acaba por dissecar o espírito da modernidade, por assim dizer. Está penetrando no Brasil agora uma nova cultura, uma “cultura moderna” que tem como eixo a ação. A tecnologia acelerou o ritmo da vida e associou a máquina ao corpo humano. Afirmava-se a todo momento que somos seres de ação e não de reflexão. Os corpos, tal como as máquinas, precisavam de manutenção constante para dar o máximo de seu potencial e essa manutenção era o esporte.

Esse pensamento pode ter contagiado os jovens de classe média que entravam em contato com este ideal nas suas viagens á Europa e transformavam-se em seus arautos em terras tupiniquins, mas, por outro lado, preocupava as velhas elites locais, formadas na cultura da razão e da palavra. Isso tudo era muito estranho para eles. A saída era controlar essa juventude. Bem, o maior símbolo da disciplina sempre foi a instituição militar. Os rapazes receberam bem a ideia dos TG porque ali podiam praticar esportes, podiam ser viris, homens de ação, como pregava o “espírito da modernidade”.

O Tiro de Guerra, portanto, foi um belo acordo entre o Exército e as elites locais. Seu sucesso se deve á coleção de atividades e signos que possuía que encantava toda uma geração de amantes do movimento, do engajamento físico. Assim, a juventude “moderna” se fez juventude fardada. E no próximo artigo veremos com maiores detalhes como essa transformação se deu em Taubaté.

Veja a parte 2 desse artigo

ESSA JUVENTUDE FARDADA… (II)

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte
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